Tio Colorau

Por Erasmo Firmino

Tio Colorau

Por Erasmo Firmino

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Santa Delmira é um bairro tão distante, mais tão distante, que quando a notícia de uma morte chega até lá, é sinal de que já estão celebrando a missa de trigésimo dia na Capela de São Vicente. No Santa Delmira ninguém usa relógio, observa-se o meridiano de Greenwich para saber o fuso horário. De modo que toda mocinha do Santa Delmira sabe que se quiser arrumar namoro, tem que ter o dobro das qualidades de uma mocinha de qualquer outro bairro, pois ela precisa repassar para o namorado a sensação de que a viagem valeu a pena…

Não é à toa que o Santa Delmira é próximo do Resistência, haja fôlego…

A mocinha da qual vamos falar, se tiver alguma coisa é de Delmira, porque de Santa ela não tem nada…

O nome dela é Aline, morena fechada da cor de Embaré, que

tanto namora sentada como de pé. Única solteira das filhas de Seu Jonas e Dona Adélia, Aline carregava nas costas o fardo dos casamentos bem sucedidos das irmãs. De família religiosa, Aline sempre compareceu aos templos de livre e espontânea pressão. Aos quinze anos havia enchido o saco de, sobretudo nos carnavais, acampar com o pessoal do Shalom.

Quem nunca teve fogo, que atire a primeira brasa…

“Começo a suspeitar, aos quinze anos, que não prestar é o

que mais presta nesse mundo…”, escreveu ela em seu diário.

Não demorou para Aline trocar o menino Jesus pela Garota Safada…

Todavia, essa mudança na personalidade de Aline não era perceptível a olho nu. Só um microscópio apurado e um narrador onisciente eram capazes de desvelar o aquecimento global que derretia lentamente as calotas internas de uma alma em ebulição.

Aline era do tipo que dava a unhada e escondia a unha. Dissimulada. Semelhante a um animalzinho de estimação que quando o dono pede a pata faz que não sabe, mas que quando é um estranho que pede balança até o rabinho.

Com o aval dos pais, analfabetos digitais, e com a desculpa de difundir o evangelho na rede mundial de computadores, Aline criou uma página chamada “Dá sem olhar a quem!.

Com dois meses de existência, a página “Dá sem olhar a quem!” já havia feito mais pelo sexo do que a descoberta da pílula anticoncepcional.

Foi através da página que Aline conheceu Adriano Maromba, funcionário da Azevedo & Travassos e lutador de jiu-jítsu. Adriano era um daqueles que trabalham quinze e folgam quinze. Aliás, fora realmente em uma de suas férias, enquanto peregrinava pela internet, que Adriano deu de cara com o “Dá sem olhar a quem!”. Uma postagem lhe chamou atenção: Os 10 mandamentos do beijo na boca. Já que Aline estava sempre online tirando as dúvidas dos leitores, foi amor a primeira teclada.

Em casa, Aline se virava. Sempre que seu pai pedia para ver a página ela fingia que o sinal da internet havia caído e botava a culpa na TCM…

Depois de dois meses de namoro virtual, Aline decidiu que estava na hora de chegar às vias de fato. Foi com essa ideia fixa na cabeça que interpelou os pais: “Painho! Mainha! Na página, sabe, eu encontrei um rapaz, parece que ele nem tem mãe mais, que andava meio descrente, já tinha pensado até em suicídio, só que eu falando com ele, ouviu painho, preste atenção mainha, estou quase conseguindo trazê-lo de novo para a Santa Igreja! – disse Aline marejando os olhos.

Toda sonsa é que nem locutor de radio, fala rápido para ninguém perceber a mentira…

— Eu estava pensando, junto com umas leitoras do blog, de fazer um encontro para Jesus na casa dele. A senhora deixa eu ir mainha?

— Por mim, não faço questão, seu pai é quem sabe… – disse Dona Adélia.

O senhor deixa? – disse Aline, já preparada para o choro caso o pedido não fosse concedido.

— Onde esse rapaz mora, Aline? – perguntou Seu Jonas, que assim como qualquer morador do Santa Delmira a primeira coisa que pergunta é pela distância.

— No 30 de Setembro, painho…

— Quem são essas leitoras do blog? – todo pai de sonsa acha que as filhas dos outros é que são sonsas.

— Umas meninas do coral da Igrejinha do Liberdade I…

Era mentira, claro. Sonsa adora fundamentar suas ações com o espinhaço alheio.

— Quando é esse encontro para Jesus?

— Sábado.

Curioso. No mesmo dia da festa de Garota Safada no Mossoró Cidade Junina…

— Pode ir, voltando cedo.

Aline correu para dar a notícia a Adriano. Ela ficou mais ansiosa para a chegada do sábado do que Celina Guimarães para votar…

Mas o sábado chegou. O “encontro para Jesus” estava marcado para as quatro da tarde. Às duas, Aline começou a se arrumar. Sem carregar muito na maquiagem, claro, pois em cara de pau a tinta não pega. Conferindo a hora de cinco em cinco minutos, por fim, Aline deu uma olhada em torno do quarto, ela sabia que poderia ser a última, não aguentou: — Não matei ninguém para merecer está presa! – disse.

Despediu-se dos pais.

— Antes das sete é pra estar em casa, ouviu Aline?

— Ouvi, sim senhor!

— Cuidado nas estradas minha filha – disse Dona Adélia.

— Tá bom, mainha.

E Aline foi até o bar da esquina, no qual os mototaxistas faziam ponto. Mulher é assim, quando está querendo se perder, se sujeita até a ir de moto-táxi do Santa Delmira para o 30 de Setembro…

Deu sete horas, deu oito horas, e nada de Aline. Deu nove horas, deu dez horas, e haja Aline demorar. Passou o domingo, a segunda, a terça, e cadê Aline…

Na quarta de manhã, quando Seu Jonas e Dona Adália concediam uma emocionada entrevista a Carlos Cavalcante do Programa “Linha de Fogo”, foi que Aline cruzou a sala.

Pálida, assanhada e descarnada, Aline ajoelhou-se no meio da sala e jurou e bateu de pé que havia sido raptada por um anjo.

Um observador critico poderia ter indagado se havia necessidade do anjo ter mudado sua roupa…

Dona Adália e Seu Jonas, de pronto, acreditaram na história.

E abafaram o assunto. Todas as famílias religiosas são craques em abafar assuntos…

A pobre Aline passou dois meses sendo tratada a pão-de-ló.

Aline, em verdade, só voltou pra casa devido Adriano Maromba ter deixado bem claro que não queria nada de sério com mulher nenhuma: — A vida de quem trabalha embarcado é assim, aquela coisa que é hoje e não é amanhã… – esclareceu.

O crescimento da barriga de Aline era incontestável. Todo mundo já comentava. Até porque bucho é que nem espinha na cara, todo mundo olha logo…

Aline foi proibida pelos pais de sair de casa até mesmo para a igreja. Segundo eles, não se deve alimentar a maledicência alheia…

Mês retrasado Sarinha nasceu. É graúda a menina. Toda sonsa é parideira…

Aline conseguiu consegui convencer os pais de que o anjo que lhe raptara era o anjo Gabriel. E Sara, bom, Sara era a filha da luz. Concebida sem sexo.

Ontem mesmo, ao passar num ônibus leste-oeste, avistei Aline e Sarinha vindo da padaria. O rapaz que vinha ao meu lado no ônibus, chamado de Adriano Maromba, cutucou-me no ombro:

— Conhece aquela ali, ó? Aquela é Aline, a Sonsa do Santa Delmira…

E contou-me essa história, que ora reproduzo.

*

*Samuel de Oliveira Paiva nasceu em 14/12/1992, é natural de Rafael Godeiro/RN. Bacharelando em Direito pela UERN, aprovado no XV Exame da OAB. Participou da coletânea “Poesia Clandestina Vol. I (2012)”, foi selecionado em concurso de contos promovido pela Big Time Editora, além de já ter contribuído com poesias, resenhas e contos para os jornais Clandestino, Gazeta do Oeste, O Mossoroense e revista Cruviana.

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