Tio Colorau

Por Erasmo Firmino

Tio Colorau

Por Erasmo Firmino

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phebo-odor-de-rosas

Tenho muita saudade da máquina de escrever. Bater nas teclas com força e ouvir o tec, tec, tec. No fim da linha empurrar o braço mecânico pra esquerda e começar de novo. A, S, D, F, G. A, S, D, F, G.

Tenho saudade do telefone de disco. Eu tinha uma prima que usava três dedos pra discar os seis números. Ela tinha unhas longuíssimas cobertas de esmalte vermelho e entre o indicador e o médio ainda segurava o cigarro. Elegantérrima. Tenho saudades do tempo em que fumar não era politicamente incorreto, apenas fazia mal pra saúde. E do cheiro do óleo bronzeador que também entrou na lista dos vilões sociais. Óleo de urucum, Rayito de Sol e outros menos cotados.

Tenho saudades da agenda de papel. Todos os telefones anotados com letra caprichada. Tenho saudade até de perder tempo passando a agenda a limpo quando a lista de amigos ficava maior que o número de páginas. Ou quando era preciso apagar alguns nomes. Nunca deletá-los.

Tenho saudade de fazer pipoca na panela. O milho estourava no óleo quente soltando aquele cheiro de sala de cinema. Poc, poc, poc. Também sinto falta do ovo batido em ponto de neve no braço. Sem parar pra não desandar a receita. E tenho saudade da vitrola, da agulha e do vinil girando em três rotações: 33, 46 e 78. Do chiado do velho LP, do drama de um disco arranhado.

Tenho saudade da manga espada, buraquinho aberto na casca pra beber o caldo. Da goiaba de vez colhida no pé, na primeira mordida vinha metade do bicho que morava lá dentro. E do morango suculento e com gosto de morango. Os morangos de hoje são lindos, mas não têm caldo nem sabor. Tenho saudade de esperar um mês inteiro pela próxima edição do meu gibi preferido e de colecionar figurinhas no álbum. Coladas com cola Tenaz. Cole e descole se for capaz.

E, acima de tudo, tenho saudade de esperar uma semana inteira pra que as fotos fossem reveladas. Ah, como eram bacanas as máquinas fotográficas não digitais e os rolos de filme rebobinados. Saudade de chamar as coisas de bacanas. Saudade de quando as lembranças não eram instantâneas.

Dito isso, devo confessar que não sou muito boa de memória. Esqueço nomes e fisionomias. Só decoro instantaneamente números e letras de música. E cheiros. E sons. E dores. Mas lembro-me destas últimas pela sensação que produziram, quase nunca pelos personagens que as provocaram. Hoje agradeço essa falha como um dom.

Tenho saudade do Neutrox amarelo, do pac man, da agenda Cassio, do Leite de Rosas, do sabonete Phebo, chiquérrimo. E ter saudade não é querer ter tudo isso de volta. É apenas a confortável sensação de ter idade pra ter saudade do que não está na moda, do que já passou, do que não existe mais e ainda assim era bom simplesmente porque me fazia bem. É ter experimentado todas as mudanças e ter aprovado algumas, detestado outras.

Tenho saudades do bom português, do romance bem escrito publicado em edição de capa dura. Dos políticos que tinham vergonha de serem tachados de corruptos, ainda que fossem. Dos eletrodomésticos que duravam tanto quanto um casamento, quase a vida inteira. De andar de carro com a janela aberta. Ter saudade é um privilégio. Minha memória não é lá muito boa, mas é sábia. Guarda com nitidez as delícias e arquiva os rancores em gavetas trancadas que eu nunca me lembro de abrir. 

* Ana Paula Padrão, jornalista. Publicado originalmente na revista IstoÉ.

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9 respostas

  1. Lendo esta crônica de Ana Paula Padrão lembrei de uma especial escrita por meu pai, José Adolfo de Oliveira. Saudosista por excelência, nos deixou algumas crônicas, que nunca foram publicadas.

    DEVANEIOS

    O que é a saudade? Entre as definições – que são muitas – há uma simplória que talvez vá direto ao assunto: vontade de ver ou viver de novo¨.No alto de meus oitenta anos sou um monumento de saudade. Tenho saudade de tudo: da infância que se perdeu no tempo, dos meus cabelos que caíram na estrada, de meu rosto liso sem as marcas do tempo, de meus olhos que enxergavam à distância, da audição sem ajuda de aparelhos. Tenho saudade de tudo: do terreiro da casa da fazenda, do cantar do galo anunciando as madrugadas, do badalar festivo do sino da capela. Tenho saudade de tudo: da carta do ABC, do caderno de caligrafia, dos hinos que se cantavam nas escolas, da professora que fazia da profissão um sacerdócio. Hoje essas profissionais são ¨Tias¨. Que pena! Vilipendiaram a grandeza das Mestras.
    Sou, sim, um saudosista por excelência. Tenho saudade de tudo, até – por incrível que pareça –de um amor que nunca tive . De um amor que poderia ter aparecido em minha vida, aumentando a cadeia dos amores e das paixões que vivi. Sim, vivi muitos. Mas um amor a mais não é demais. E sempre me entreguei a eles com intensidade. Comigo era difícil um amor não virá paixão. Daí o sofrimento maior quando tudo acabava. Quando eu recebia o ¨bilhete azul ¨ ( naquela época o bilhete azul era a senha que anunciava o fim do romance – por que não vermelho ? ) parecia que meu mundo vinha abaixo. Intimamente eu cantarolava com Maísa : ¨meu mundo caiu ¨ . Mas até desse sofrimento eu tenho saudade. Como seria esse amor que desejei ter ? Talvez um amor sozinho, sem ela saber, sem ninguém ser informado. Um amor platônico? Não. No amor platônico ELA não sabe, mas ELA existe. Tive uma dessas experiências. Foi com uma professora, no curso primário. Minha mãe nunca soube porque repeti o ano três vezes. E se ela ( a professora) não tivesse se aposentado, jamais eu teria chegado à faculdade. Coisas do coração!
    O fato é que esse amor sonhado ficou perdido no tempo. Não há como recupera-lo. Vou me contentar com os que existiram.
    Tenho saudade do menino que deixou de existir dentro de mim,atropelado que foi pelas contingências da vida. Dele nem me despedi. Teria ficado insepulto? Será que o encontraria se fizesse o caminho de volta ? Ou será que ele já retornou e sem que eu perceba estamos de mãos dadas percorrendo caminhos de sonhos e de ilusões? O velho e a criança se identificam na ingenuidade dos gestos. Um ,cansado por que viveu, outro ansioso para viver.
    Tenho saudade de tudo. Do rádio à bateria, do fogão à lenha, do disco de cera, das cartas de amor, das noites de novenas, das fogueiras de São João, das estradas sem asfalto, do repente dos poetas, do apito do trem, da rede no alpendre, do alazão campeando o gado, do cheiro do mel nos tachos dos engenhos.
    Tenho saudade dos padres com batina (celebrando de costas para o povo as missas em latim), das colombinas nos carnavais com lança-perfume, dos guardas noturnos apagando os lampiões com o alvorecer do dia, das serenatas à luz da lua. Tenho saudade dos ¨lábios de mel ¨de Iracema, de Castro Alves recitando ¨Navios Negreiros ¨, de Chico Alves cantando ¨Nervos de Aço ¨.Tenho saudade ,enfim, dos filhos que não tive, dos livros que não escrevi, das árvores que não plantei, DO HOMEM QUE NÃO FUI.

    José Adolfo de Oliveira

  2. Faltou ela falar das cartas escritas a mão.Do rádio ABC CANARINHO, Da Tv Colorado, roupa lavada com cacete no beiço do rio, anágua, Calça boca de cino,E o mais importante pisa de cinturão em menino desobidiente.Essa ultima parte eu queria que voltasse.

  3. kk.. e depois das cacetadas, as roupas ensaboadas com anil iam pro quaradouro. Às vezes, as galinhas passavam e cgv em cima das roupas, o que garantia uma canja mais tarde.

  4. O texto do senhor José Adolfo é lindo. Me emocionou bem mais que o da Ana Paula Padrào. Tio, você devia publicá-lo.

  5. Textos maravilhosos. Encantada com a saudade. Eu q nem sou assim uma saudosista senti saudade de ter saudade rs. Parabéns a Ana Paula( q jamais receberá) e PARABÈNS a (Fco Adolfo de Oliveira. )Chico Adolfo deveria publicar os textos de seu pai. Doeu em ver Chico Alves . Cantor preferido de meu Pai. Osias lAves de Souza. Musicas q ele cantava tão bem para eu durmir e hoje canto tão mal para a minha filha durmir… Tadinha. Não herdei o dom de cantar . Meu pai tinha uma voz tão forte, leve e bonita , me emocionava demias. Hoje eu canto desafianda , mas com muito amor: Naquela mesa esta faltando ele e a saudade dele ta doendo em mim. Abraço.

  6. Parabéns Chico Adolfo, por resgatar a memória de alguém tão encantador como foi o seu pai. Muito há a nos ensinar com palavras tão sábias e recordações tão detalhistas que, como se não buscasse, acaba por nos apresentar paralelos de vida igualmente preciosos.

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